
Eduardo Prado Coelho
"As citações fazem-me mal aos nervos. Mas estamos imersos num mundo em que se cita sempre tudo, estamos afundados num permanente citar que constitui o próprio mundo" Thomas Bernhard
“Themroc” foi um filme que chocou o público na década de 70 e que chegou mesmo a ser retirado das salas de cinema até aos anos 90. A companhia Suiça Kraut_Produktion não se esqueceu dele e fê-lo servir de inspiração para uma peça de teatro, “Back to the Roots” (TNDMII, 24/25 Julho’07)
Themroc é pintor de construção. Todos os dias, os mesmos gestos automáticos repetem-se: o pequeno-almoço, o tique-taque ensurdecedor do relógio, o olhar de desejo em fuga à irmã mais nova, a viagem de bicicleta e metro com o colega de trabalho até à fábrica. Certo dia, um dia igual a tantos outros, a vida de Themroc muda quando é apanhado em flagrante a espiar o ‘flirt’ do patrão com a secretária. Começa aqui a odisseia, magnificamente interpretada por Michel Picolli que, a partir deste momento, sofre uma mutação e transforma-se, entre o desespero e a euforia, num homem-besta.
Por pouco, quase nos parece ouvir a primeira frase da “Metamorfose” de Kafka que inicia a história do caixeiro-viajante, Gregor, que se transforma num insecto: "Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto". O processo é semelhante, sendo que Claude Faraldo faz Themroc regressar à sua origem animal, abandonando a era da civilização para regressar ao comportamento da idade da pedra. O protagonista passa a exprimir-se através de rugidos, uma espécie de língua inventada, de comportamentos animalescos, provocando e despertando espanto em todos com quem se cruza. Mais tarde, constrói uma caverna improvisada, onde se repetem orgias e o incesto.
Este filme, que se gosta ou não se gosta, é nitidamente um produto do seu tempo. Os anos 60 e 70, como período de grande mudanças sociais e culturais, fomentaram o sentido da rebeldia e abraçaram as noções anarquistas que se fizeram, alias, sentir no cinema francês deste período. Claude Faraldo não lhes foi alheio e assina a realização de um filme perturbador, controverso, salpicado de momentos de humor, sugerindo uma crítica aberta ao tipo de existência que a sociedade moderna oferece. “Themroc” canta o regresso a um estado de natureza, em detrimento dos mecanismos da sociedade de consumo, provoca, insulta, grita, confronta-nos com o absurdo.
Esta “falha” da sociedade é comum, por exemplo, a algum cinema europeu da Nouvelle Vague. Jean-Luc Godard, em “Week End” (1967) já o havia feito ao abrir caminho a um estilo mais politizado e desconstrutivista ao denunciar a sociedade consumista. É também nesse sentido que caminha Claude Faraldo criando cenas simbolicamente interessantes como aquela onde Themroc abre um buraco na parede do seu apartamento e começa a atirar bens de consumo para a rua. O regresso a um estado primordial da existência, que contrasta com a postura das figuras do poder, é corroborado nos primeiros vinte minutos do filme onde existe uma ausência total de diálogos. Esta visão satírica do mundo do trabalho é reforçada pela mutação através da linguagem. O filme assenta, sobretudo, no impacto dos vários efeitos visuais e a linguagem dá lugar a impulsos, sons e gritos.
Talvez possamos concordar, com alguma crítica, que, tal como o cinema desta época, estamos perante um filme “engagé”. Themroc, à sua maneira, é um militante de causas como a liberdade sexual, a contestação da autoridade opressiva e do poder desmesurado. Com um sabor amargo, no final, de raiva, que ecoa nos rugidos que vão compondo a banda sonora, “Themroc” assusta pela forma como nos mostra o carácter inumano que a sociedade adquiriu. Homem ou besta, a transgressão é a palavra-chave. Conformar-se ou não, eis a questão.
Contra o medo, liberdade
Manuel Alegre
"Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos a público. Casos pontuais, dir-se-á.
Mas que têm em comum a delação e a confusão entre lealdade e subserviência. Casos pontuais que, entretanto, começam a repetir-se. Não por acaso ou coincidência. Mas porque há um clima propício a comportamentos com raízes profundas na nossa história, desde os esbirros do Santo Ofício até aos bufos da PIDE. Casos pontuais em si mesmos inquietantes. E em que é tão condenável a denúncia como a conivência perante ela. Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária. As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nem sempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência de uma cultura de liberdade individual. (...) Não se pode esquecer também a responsabilidade de um poder mediático que orienta a agenda política para o culto dos líderes, o estereótipo e o espectáculo, em detrimento do debate de ideias, da promoção do espírito crítico e da pedagogia democrática. Tenho por vezes a impressão de que certos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, sem história nem memória.(...) Há mais vida para além das lógicas de aparelho. Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que a recomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentido positivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidos políticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedem a mudança e a abertura. Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: "Entre nós e as palavras, o nosso dever falar." Agora e sempre contra o medo, pela liberdade."
Público, 24/07/07
Diane Arbus, "Identical Twins", N.Y., 1967
Chegou a Portugal o DVD do filme "Fur: An Imaginary Portratait of Diane Arbus". Dirigido por Steven Shainberg, "Fur" retrata um período da vida de Diane Arbus (Nicole Kidman) que se apaixona por Lionel Sweeney (Downey Jr.), um homem enigmático que estabelece o contacto entre Arbus e pessoas marginalizadas que a ajudarão a transformar-se numa das maiores fotógrafas do século XX.
Diane Arbus fotografou com uma Rolleiflex, de lente dupla, e tentou sempre captar a diferença, desde o disforme, ao monstruoso, até à doença. Diz-se que Arbus era uma artista metódica que delineava cuidadosamente cada fotografia antes de a tirar. A sua obra questiona o que é o «normal» e quais os limites relativamente ao patológico. Arbus acabou por se aproximar da fotografia de moda, a seguir à II Guerra Mundial, como assistente do marido, Allan Arbus. 1964 foi um ano marcante na sua carreira, assinalado com uma exposição individual no MoMA. Suicidou-se a 26 de Julho de 1971.